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Quando a chuva passa a ter cara de gente | 29/04/2020

Por Ivan Moraes, vereador do Recife (PSOL)

· Cartas à Queridagem

Recife, 29 de abril de 2020

Minha queridagem linda,

Esses dias, choveu. Eu sou desses que gosta de trocar energia com a natureza. Não posso ver água que quero logo me molhar. Gosto de banho de bica, de mar, de rio, de chuva. Nessa quarentena, por duas vezes fui mostrar ao bebê como pode ser legal aproveitar daquele choveirão que o planeta Terra liga de vez em quando.

Menino de apartamento que fui, eu sempre achei a chuva uma coisa massa. Na infância, eu descia com um punhado de sabão em pó escondido sempre que o térreo estava molhado. Espalhava, fazia espuma e ficava brincando de escorregar com a pirralhada do prédio e da vizinhança.

Mas a forma de compreender e esperar a chuva não é igual pra todo mundo. E isso não é questão de gosto, viu? É de privilégio, de exclusão. Tudo fruto da mesma matriz que, infelizmente, divide as pessoas na nossa sociedade e define quem está aqui pra se dar bem e quem está pra ser dar mal.

A diferença da percepção da chuva por cada pessoa depende do lugar onde mora, da conjuntura em que vive. Bem cedo, aprendi que tempestade na cidade é uma coisa, no campo é outra. Água quando cai no sertão normalmente é festa. Como é feliz chegar na caatinga e ver aquilo ali tudo verdinho! Açudes cheios, animais engordando. Rostos enrugados de quem está acostumada a trabalhar sob o sol e que não esconde a felicidade de saber que a terra está pedindo semente.

No morro, chuva muitas vezes é incerteza. Assim como nas margens dos tantos rios e canais que cortam o Recife. Pode cair barreira, pode alagar a rua, pode cair telhado, pode trazer doença, pode dar curto na rede elétrica. Todos os anos têm gente que perde móvel, perde eletrodoméstico. Perde casa e perde vida depois que a água começa a cair.

Dia desses cheguei até a escrever um roteiro de documentário pra registrar essas diferenças, essas construções de significado a partir de um mesmo fenômeno natural: água que vira vapor, que forma nuvem, que se precipita e volta para a terra em forma líquida.

Nesses quase quatro anos de mandato, a chuva começou a ter cara de gente.

A cada noite de temporal eu fecho os olhos e vejo Levi, de Três Carneiros Alto, correndo pra cima e pra baixo procurando dar uma força a quem precisa enquanto a água desce levando de tudo. Vejo Marcelo, lutando por um muro de arrimo no Alto Santa Terezinha. Dona Soledade, do Córrego da Areia, presa dentro de casa porque a ladeira onde mora não tem corrimão e ela, idosa, não tem segurança pra caminhar no escorrego de lodo. Eu vejo os rostos firmes de Régis e Sibéria, em Jardim São Paulo, às voltas com a cheia que sempre dá no Canal Guarulhos. Vejo um quarteirão inteiro de gente usando tijolos e madeiras para levantar sofás e geladeiras e ao menos proteger seus bens materiais da enchente que vem pelo menos uma vez a cada ano. Ouço Fabíola, no Porto da Madeira, com seu apito, chamando a atenção de todo mundo que mora em sua rua. Com o Rio Beberibe cheio de entulhos, o bairro alaga e sua garagem muitas vezes serve de abrigo pra a vizinhança.

Penso em quem está em ocupações, lutando e botando o corpo à prova para garantir moradia digna para suas famílias. Nas gambiarras do Sítio dos Pescadores, no bairro do Bode. Na lama da Carolina de Jesus, no Barro.

O jeito com que a nossa cidade foi sendo ocupada, com pouco planejamento público e muita ganância do mercado imobiliário, desde sempre contribuiu para que o período chuvoso atrapalhasse a vida de muita gente. Cada prédio construído perto demais da água, cada shopping center que toma lugar do mangue, cada árvore que se torna asfalto, cada ação humana incompatível com a saúde da natureza é um passo que a gente dá em direção à tragédia sempre que a água cai do céu.

A cada ‘inverno’, que é como a gente chama a temporada molhada do nosso clima sempre quente, a gente se aperreia. O primeiro desafio foi evitar os caminhos mais fáceis. Nem dá pra botar a culpa na natureza nem pra jogar tudo no colo da prefeitura. Mas se em poucos anos de gestão não se consegue resolver um problema que se arrasta há séculos, é urgente que o poder executivo entenda que tem que fazer a sua parte. E qual é a tarefa de um mandato legislativo nisso tudo?

No primeiro ano a gente foi estudar. Conversei com especialistas pra entender melhor a dinâmica das águas e com urbanistas para saber mais sobre soluções urbanas para momentos de crise pluviométrica. Entendi a importância de se preparar para o período chuvoso e que isso vai muito além da defesa civil no momento de crise. Tem ação de prevenção, de comunicação, de plantio, de requalificação de espaços públicos. Não é possível resolver tudo de uma hora para a outra, mas é fundamental que haja esforços ao menos para reduzir os danos da temporada chuvosa que – mais cedo ou mais tarde – sempre vem.

Analisamos o orçamento público e vemos que, historicamente, a prefeitura gasta sempre menos do que planeja para ações de prevenção em áreas de risco. Às vezes, menos de 5% do que havia designado através da Lei Orçamentária Anual.

Via de regra, são ações que o nosso poder executivo costuma planejar a partir da perspectiva de empréstimos ou outros repasses, ao invés de priorizar recursos próprios. Só que às vezes o dinheiro de fora não chega. Mas a chuva… Ah, essa não falha.

Às vezes o problema nem é só grana. Em alguns casos falta mesmo capacidade operacional da prefeitura e até seriedade de empresas privadas especialistas em ganhar licitações, mas pouco diligentes na hora de entregar obras. Assim, por exemplo, não são poucas as obras de revitalização de canais que estão paradas ou atrasadas, trazendo ainda um dano colateral difícil de resolver: a perda de confiança das pessoas na importância do poder público.

Este ano resolvemos dar mais uma força ao poder executivo, a partir de uma campanha que sugeriu que as próprias pessoas nas áreas de risco pudessem indicar pequenas intervenções necessárias para evitar maiores tragédias quando São Pedro abrir suas torneiras, como já está abrindo. Logo depois do Carnaval lançamos a pergunta nas nossas redes (virtuais e presenciais).

Durante algumas semanas qualquer pessoa podia nos marcar numa postagem sob a hashtag #AntesQueChova ou nos comunicar diretamente o que precisava ser feito na sua rua ou sua comunidade.

O resultado: mais de 80 sugestões, que transformamos em requerimentos e aprovamos no plenário da Câmara Municipal. São solicitações de muros de arrimo, limpezas de galerias e canaletas, instalação de corrimões, pequenos reparos na rede de drenagem. Todas essas solicitações já se encontram no poder executivo e também é tarefa nossa ficar ‘cutucando’ de vez em quando para ver se esses serviços (que são essenciais) estão sendo realizados.

Esses dias, com pressão nossa e da comunidade, depois de mais de oito anos, uma equipe da Emlurb realizou um serviço de manutenção na rede de esgoto de uma parte da Brasília Teimosa. Um trabalho de algumas horas. Um impacto tremendo para dezenas de famílias que sempre sofrem com alagamentos e até dejetos voltando para dentro de suas casas. Em tempos de isolamento social, a ação pode até ter salvado vidas.

Foi um momento feliz. É bem verdade que ainda faltam terminar o trampo e recolocar as grades das galerias, garantindo a segurança de quem mora no local.

Cobrar que isso aconteça é mais uma tarefa do vereador, né não?

Sigamos em frente e até a semana que vem.

Ivan Moraes

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