por Ivan Moraes
Quem é cristão de verdade precisa saber que não existe absolutamente nada na Bíblia sobre o Carnaval. O livro mais importante da religião criada por um certo nazareno que perambulou pelo Oriente Médio espalhando o amor há coisa de dois mil anos não contém nenhuma linha sobre blocos, fantasias, nem mesmo sobre loló. Sim, é verdade que em muitas passagens há mensagens sobre evitar o consumo de álcool e outras drogas, assim como sobre recomendações, muitas delas nas cartas de Paulo, contra a "imoralidade" e a "depravação". Leiam bem: sobre a folia de Momo, nada. Nadica de nada.

Texto sagrado à parte, é bom dizer que a própria invenção do Carnaval é coisa de quem se alinha com Jesus. Afinal, vem da Igreja Católica (antes de o protestantismo existir) a ideia de se celebrar "os prazeres da carne" antes que se inicie a quaresma: quarenta dias em que os fiéis devem jejuar até que possam celebrar a Paixão de Cristo, que tem sua apoteose com a ressurreição. Se no início eram banquetes europeus, a festa chega ao Brasil elitizada, caracterizada por manifestações como o "corso", em que famílias da sociedade desfilavam em carros no início do século passado.
Ter sido apropriada pelas classes populares foi definidor para que a folia se tornasse o que é hoje, particularmente a partir da contribuição dos povos negros e indígenas, que até hoje têm nesta época a apoteose de sua cultura. É quando nascem manifestações como o frevo, por exemplo. E como os afoxés, que no idioma iorubá significa literalmente "fala e faz" e que levavam para as ruas elementos até então restritos ao interior dos terreiros de candomblé.
É por tudo isso que causa estranheza quando certas lideranças religiosas desinformam suas comunidades ao dizer que o Carnaval "é proibido por Deus", que "a Bíblia é contra a brincadeira" ou mesmo o esculacho de dizer que a festa "pertence ao demônio". Se é verdade que as pessoas desta fé podem (e acreditam que devem) evitar o uso de substâncias tóxicas ou mesmo a atividade sexual, não faz absolutamente nenhum sentido dizer que apenas por isso a folia de Momo encontra-se fora dos limites estabelecidos pela doutrina cristã.
Ao mesmo tempo em que muita gente de fato escolhe estes dias para "sair da casinha", experimentar e colocar-se em risco, é perfeitamente possível brincar "de cara" e cumprir todos os preceitos religiosos de qualquer credo. Nada além de preconceito pode justificar uma "proibição religiosa" a uma das maiores festas populares do mundo — e uma das mais importantes para a economia nos locais em que acontece. Atribuir ao Carnaval propriamente dito uma identidade de natureza demoníaca é apenas um aprofundamento do racismo religioso que implica estas mesmas características a todo e qualquer culto de origem africana ou da LGBTQIA+fobia que associa ao mesmo diabo qualquer identidade de gênero ou sexualidade que se diferencie do padrão heterocisgênero.
Desta forma, não importa se você tem ou não fé no que quer que seja. Que seus dias carnavalescos sejam de felicidade — e que isso de fato importe. Seja no bloco ou na praia; frevando, lendo ou assistindo filmes, batendo tambor ou orando em retiro espiritual, procure o seu próprio prazer físico e mental. Gostando ou não da folia, deixe o Carnaval em paz. E que assim seja.