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Pra onde vai o lixo bilionário do Recife?

· Cartas à Queridagem

Carta à queridagem

Recife, 10 de junho de 2021

Salve, Queridagem,

Faz mais ou menos um mês que rolou a Semana Internacional da Compostagem e, dias atrás, a Semana do Meio Ambiente. Foi entre uma data e outra que eu tomei vergonha na cara pra adquirir uma composteira. A ideia não era nova e até cheguei a fazer uma artesanal, com baldes de manteiga (é facinho) há alguns anos. Mas a preguiça acabou fazendo com que eu doasse a bichinha e só agora arrumei outra, de uma empresa que tanto vende quanto presta o serviço de coletar seus orgânicos compostáveis por um precinho camarada. 

A real é que eu tou animado demais. A cada três dias eu alimento as minhas minhoquinhas e já tou com um balde de humus secando que, neste final de semana, vai virar comida pra o manjericão, a hortelã, o alecrim, o tomilho e o jasminzinho que habitam meu quintal. Só com isso e com a separação de material reciclável já reduzimos radicalmente o lixo que é gerado aqui em casa. Quase tudo que a gente descarta hoje em dia é papel, garrafas de vidro e o tanto de plástico que a indústria continua vendendo pra a gente junto com alimentos e que ainda é um grande desafio pra reduzir (embora a geladeira esteja cheia de potes de sorvete com feijão, macarrão e arroz).

Casou que foi nessa mesma época que nosso mandato começou a se debruçar sobre a questão dos resíduos sólidos na cidade do Recife. Primeiro a gente viu o edital que havia sido lançado e se assustou. Mais de R$ 1 bilhão previstos para serem executados em cinco anos, nos maiores contratos da gestão municipal. Pra você ter uma ideia, o lixo (hoje localizado em apenas dois contratos, com duas empresas) costuma abocanhar 5% de toda a grana executada pela Cidade. Pra a gente ter uma ideia, no ano passado a coleta gerou uma despesa de R$ 268,8 milhões – quase 40 milhões a mais do que foi gasto em dezenas de contratos com dispensa de licitação para o enfrentamento ao Coronavírus.

Como o Tribunal de Contas do Estado vem mostrando há quase dez anos, mais uma vez a licitação foi publicada cheia de problemas. Um deles é a divisão do edital em apenas dois lotes. Isso dificulta, por exemplo, que empresas menores possam concorrer a fatias menores do contrato. Prejudica a concorrência tanto quanto a proibição da formação de consórcios, que também constava no edital. Pra a gente ter uma ideia, a Fundação de Instituto de Pesquisas Econômicas pesquisou e mostrou que o aumento da quantidade de lotes pode significar uma redução de até 30% no custo total dos contratos. Não é pouca coisa. 

Foram justamente essas questões de grana que, a pedido do TCE e do nosso mandato, fizeram com que a Prefeitura suspendesse o edital havia lançado pra elaborar outro – que deverá sair nos próximos dias. Foi também o assombro desse gasto que fez a gente chamar uma audiência pública pra falar do tema no final de maio. Para analisar a política de resíduos do Recife, nos debruçamos não apenas sobre o edital, mas sobre a forma com que o poder público municipal tem tratado esse assunto tão importante, tão contemporâneo e tão escondido da mídia tradicional ao longo da última década.

Os resultados são ainda mais assustadores do que o dinheiro que anualmente colocamos no lixo. Aprendi que há, no Recife, nove cooperativas de reciclagem registradas pela prefeitura e que recebem resíduos coletados por empresas contratadas pela gestão. Oito delas fazem parte do Movimento Nacional de Catadores, com quem conversei junto com a galera do mandato. Dessa turma, reclamações não faltam. Sobre a falta de compromisso com a universalização da coleta de recicláveis; sobre possíveis desvios dos materiais mais valiosos para finalidades diversas; sobre a falta de infraestrutura para o trabalho; sobre a falta de campanhas educativas para a população; sobre a falta de diálogo da gestão do PSB. Uma consequência disso é que o edital da prefeitura era praticamente omisso quanto à coleta seletiva e à relação com quem faz o serviço na prática. A “consequência da consequência” é que Recife recicla menos de 2% dos resíduos que poderiam se transformar em outra coisa ao invés de entupir galerias, matar o mangue e causar transtornos na cidade. 

Você sabia, por exemplo, que a rígida e temida lei das licitações (a famosa 8666/93) permite a contratação sem licitação de cooperativas de catadores/as? Que esses grupos podem inclusive serem pagos para fazer a coleta nas residências? Eu mesmo não sabia e fiquei de cara quando o representante do Fórum Lixo Cidadania falou isso na audiência. Com essa galera empoderada, preparada e contratada pra ir buscar os materiais diretamente, os ganhos não são apenas ambientais. O impacto na vida das famílias que vivem dessa tarefa e do seu entorno seriam gigantes.

Isso sem falar na compostagem, né? Uma coisa é eu fazer aqui na minha casa, reduzindo o que eu mando pra a coleta. Outra é a galera se unir a cooperativas e organizações que, de forma militante e privada, têm feito isso em muitas cidades (no Recife eu conheço pelo menos duas). Mas imagina se a própria gestão pública se responsabilizasse e incluísse nos contratos a garantia de que esses dejetos iriam ser tratados pra virar adubo ao invés de gerar fedor e doença? 

Em Florianópolis, por iniciativa do vereador Marquito (PSOL) já tem lei dizendo que, até 2030, 100% dos resíduos orgânicos terão que ser compostados e não poderão ser enviados para aterros sanitários nem incinerados. Aqui no Recife, nosso mandato está elaborando uma proposta semelhante, em parceria com ativistas ambientais que entendem do riscado. Além de organizações de catadores, a turma do Lixo Cidadania e da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental já tão dentro. Eu mesmo tou botando muita fé de que podemos iniciar aqui a nossa própria “revolução dos baldinhos”. Mas pra isso vamos precisar fazer barulho e eu quero seguir contando com você.

Ivan Moraes, vereador do Recife pelo PSOL

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